Um Fado do olhar
Na génese a palavra retrato significa, a imagem de uma pessoa, a própria imagem fotográfica, a semelhança ou ainda a descrição de um traço do carácter e de um tempo.
O Fado não se deixa fotografar com facilidade. As fotografias não ousam reproduzir as vozes, o som das guitarras, e tão pouco desvendam poetas ou os autores da música. Estes retratos de artistas que são do Fado são difíceis de posicionar enquanto exemplo dos tempos que correm, estes do ano de 2015. Hoje, o género do retrato convive entre a vulgaridade da auto-representação, tendo como género predominante a ‘selfie’ e destino provável o perfil do facebook, a conta de instagram ou do twitter. Num outro domínio, os retratos de intenção comercial, editorial ou corporativa, elaborados por fotógrafos profissionais são exaustivamente retocados com as ferramentas de Photoshop, (re)criando estereótipos de personagens que apagam muitos dos traços de verosimilhança do modelo fotografado.
O projecto que Aurélio Vasques pacientemente criou para o Museu do Fado contraria as tendências contemporâneas do retrato fotográfico, nem vulgar, nem comercial, encena um outro modo de pensar e de fazer retratos. Convocou uma tecnologia destoante, a analógica, hoje entendida como arqueologia industrial, utilizou uma máquina de grande formato e fotografou com película monocromática. No ambiente neutro do estúdio, utilizou apenas uma objectiva, uma fonte de luz contínua e um reflector, de modo a recortar os seus personagens de um fundo escuro. Com uma aparente simplicidade de meios e mantendo inalterável esta linguagem, em todos os retratos, Aurélio desenhou um projecto que vai para além das questões meramente formais. Estas, de facto, parecem desaparecer perante o encontro entre fotógrafo e retratado, um momento solene, único.
Método, prática e técnica convocam uma dupla encenação. Por um lado, as fotografias revisitam e citam os retratos fotográficos do século XIX, tendo o estúdio como lugar solene, onde se dá o encontro que fixa o momento da fotografia. Por outro e quanto ao formato expositivo, esta galeria de personalidades do Fado pode filiar-se na ‘democracia do olhar’ proposta por August Sander, no seu projecto ‘As Pessoas do séc.XX’, onde todos os retratados são iguais perante a camera. Ao manter este gesto fotográfico, Aurélio Vasques também considera todos os seus artistas como iguais, garantindo a cada um o mesmo estatuto na página do livro.
As fotografias partilham com o Fado uma condição transversal, são em simultâneo uma forma de cultura popular e um modo de expressão erudita, da baixa e da alta cultura. Neste Fado cabem muitos fados, e estes artistas têm filiações e influências distintas, pertencem a gerações diversas, modos de expressão e caminhos diferentes. Não será através destas fotografias que conseguiremos entender e distinguir o grau de importância e de relevância de cada um destes artistas e das suas carreiras. Fado significa profecia, fortuna, destino, sorte, o que tem de acontecer, vaticínio, um inevitável conjunto de acontecimentos que está para além da vontade humana, uma fatalidade. Mas ao conjugar o verbo fadar, Aurélio Vasques determinou uma outra sorte para este seu Fado. Indo além da coerência formal, a estrutura e a sequência que desenhou evitam qualquer tipo de classificação, cronologia ou arranjo evidente. Ao ver e rever estes retratos compreendemos como a inteligência e a persistência do fotógrafo criaram esta sincera crónica visual do Fado. A empresa não era de todo fácil.
Paulo Catrica
Lisboa, 11 de novembro de 2015